terça-feira, novembro 11, 2008

Punk Drunk Love




Este filme merece ser visto...

domingo, novembro 09, 2008

Television - Guiding Light




...essa é só pra você, senhorita...

sábado, novembro 08, 2008

O que o Saldanha disse do Obama


"Ele vai aterrisar o avião devagar" -
é tudo o que queremos, não?
Welcome to China, the times they're are a a'changin'
- and a hard rain's gonna fall...

De Marechal para Marechal

Alvinho, meu querido, sim, vou concluir a resenha sobre o livro do Nuno Ramos - esplêndido, aliás - maas não, Marechal, não sei daquela outra, viu?
Sei que concordo com você em quase tudo, que seus cortes no meu poema sobre a cadela foram de suma importância, que a sinceridade não é para qualquer um....

Quanto ao seu Orson Othelo, Grande Welles, dá o maior pé! Escreve, porra, pára um pouco.

Outra coisa meu filho: cinco dias sumido é recorde. Você devia morrer, Marechal, para não ser uma prova viva de que até o desregramento pode ter o seu rigor.

Mas ninguém quer isso... Boa noite, caríssimo, espero que tenha chegado em casa são (?) e salvo.

E obrigado por alimentar meu rancor com a alegria imensa de ver supostos rivais caírem por terra no lodo obscuro da linguagem...

quarta-feira, novembro 05, 2008

Retrato cubista (para cdcl)



Não há remédio
para cólicas e abismos
afetivos:
você ali sentindo as
dores dentro e

o amor através -

além das
expectativas
mofadas ao
sol, eternas
cativas dos
malefícios fiscais
sem retorno -

do sorriso
infantil às margens
da Lagoa
após uma palavra
afiada
da última vez etc. -

então
o telefone
público
explode em cacos
oito meses
de idas sem volta -

esperas
tão banais
quanto um arco
e flecha
de brinquedo
um beijo sem retorno
ou dez mil pixels
de Picasso

(não esqueceremos
nada disso
querida,
e no entanto queremos
dormir em paz.)

quarta-feira, outubro 29, 2008

ELEGIA/ACC



Não,
Ana, nem
vem que não
tem: que
há para celebrar?
Teu salto
descalço na piscina
vazia?
As vinte e poucas
edições de tuas
obras
incompletas?

Os poemas
em
tua homenagem,
as mil e
uma teses de mestrado
calcadas
nas entrelinhas
do teu
desespero?

Não, Ana. Esqueça.
Sabe das novas? Armando
vai bem, Eudoro
também, Angela lhe quer
bem, mandou
um beijo
inclusive -
disse que lamenta,
infelizmente

não
pretende
comparecer ao
enterro
de tua última quimera.
Isso é meio
cruel.
E daí? Foda-se,
Ana C.,

você exaspera
qualquer um
com dúvidas, dívidas
filhos e culhões
com esses ares
de sereia pré-rafaelita
perdida
no Baixo Gávea -
tanto
tesão, meu deus

tanto ardor e
catecismo sex drugs
and rock'n'roll
pra quê
caralho! - tudo
se esvai
num brinde inútil
ao Vazio.
Você não merece nem
um poema frio.
Nem flores de outubro
a teus pés.

Tudo bem, deixa
quieto. Mantenha contato,
o povo daqui
ainda gosta muito
de ti.
Vê se muda de ares -
abraço,

Leo

De Chirico + Yves Bonnefoy = ?




VERO NOME

Yves Bonnefoy (Tradução de Lenilde Freitas)

Chamarei deserto a este castelo que tu foste,
Noite à tua voz, ausência à tua face,
E quando caíres sobre a terra estéril,
Chamarei nada ao raio que te trouxe.

Morrer é um país que tu amavas. E eu venho
Eternamente por teus sombrios caminhos.
Destruo teu desejo, tua forma, tua memória,
Sou teu inimigo que não terá piedade.

Chamar-te-ei guerra e sobre ti
Tomarei as liberdades da guerra. Terei então
Em minhas mãos o teu rosto, obscuro e trespassado,
E em meu coração o país que acende a tempestade.

Da crepitação noturna de uma terra supliciada,
Necessita a luz para surgir
E é de bosques tenebrosos que a flama salta.
O próprio verbo sonha a essência,
Uma plácida margem além do canto.

Para que vivas, precisarás transpor a morte.
A mais imácula presença é um sangue entornado.

terça-feira, outubro 28, 2008

Help me Gelman...



Sim, este é muito bom... Mas há aquele também,"Fotografias":

Vendo em velhas fotos meu rosto onde não estás,
a face em que estás como dor, esquecimento,
penso em que estarão fazendo na China agora
com tanta tristeza como a que caía em mim,
ou crescerá como outro outono humano
cheio de ouros, de doçura,
como um fogo no meio como teu nome, ou seja
crepitarás ente os lótus de Hangchaw debaixo de outubro
como quando encontrei a justiça no mundo
e era como teu rosto,
melhor dizendo: te amo.


Sim, há estes poemas de Juan Gelman, há noites e dias sucedendo-se sem o menor sentido aparente, e amigos telefonando e mandando convites para festas e lançamentos literários tão inúteis e desinteressantes como desfechos desagradáveis para histórias inacreditáveis...

Sim, preciso ler um pouco mais de Nietzsche, Oswald, Gracián (A Arte da prudência), aprender a desidealizar o futuro e as pessoas, desconfiar dos momentos de felicidade sempre reversíveis em mágoa, dor física e insultos tragicômicos.

Preciso aprender a calar-me, esquecer, esperar.

domingo, outubro 26, 2008

Dez coisas que valeriam a pena...


1. Uma adaptação do romance Breakfast of Champions de Kurt Vonnegut produzida e dirigida pelos irmãos Cohen
2. Um show da última turnê do The Who na Apoteose, com ingressos a 60 reais no máximo
3. Traduções brasileiras para Dear Mr. Capote de Gordon Lish, Plume de Henri Michaux e a poesia completa de Frank O'Hara
4. Um novo patrocínio (ou pelo menos uma zaga) à altura da nação cruzmaltina
5. Crianças e adolescentes estudando e se divertindo o dia inteiro na escola, temporariamente libertas das neuroses e crueldades familiares
6. Mais padarias 24h espalhadas pela cidade (sobretudo nas zonas norte e oeste)
7. A condenação legal do amantes compulsivos da mentira, da inconstância e do sadismo emocional
8. A canonização de um homem negro
9. A reeedição das obras reunidas de Marques Rebelo, Samuel Rawet e Luiz Vilela
10. Ter o poder efetivo de esquecer qualquer coisa num estalar de dedos.

quinta-feira, outubro 23, 2008

ELEGIA/JC (para Luiz Carlos Lima)




Um canário canta,
meu amigo ronca - e o
cronópio portenho
sussurra:

“Quisiera ser
tu Virgílio – pero
nada te puedo decir sino que
la Humana Comedia
es asi como un ronco dulce,


um assovio estrídulo –
esse vídeo tão
pouco real,
essa noite tampouco

(a não ser pelo sono adiado)

mas teu cérebro
canta, sem
fome nem método,
teu fôlego trôpego
avança

sobre a página branca
do dia, e a voz sem corpo
está morta há
duas décadas (como
aquela feroz, de um beatle

talvez) contudo quiseste
ouvir-me – entonces
insista, carajo -
desfira tua malícia
de crítico falido em mim,

esqueça a voz
da amante histérica
(não pode ser pior
que o canário e o amigo)

- lembra: esta fita não vale
uma úlcera! –

e assim
bradava o cronópio,
enquanto meu
ânimo ia entre
doses de aguardente

e os soluços
de Bruno, o ronco
de Sandro,
os trabalhos e os dias.

domingo, outubro 19, 2008

Duas epígrafes de Samuel Rawet


- Merda! Aqui não há uma explosão metafísica, sem uma outra, psicopatológica!
("O Terreno de uma polegada quadrada")

Um profundo desinteresse por tudo aquilo lhe veio da súbita noção das infinitas possibilidades da estupidez, e uma outra confusa, a de que podia continuar só. Aceitava o Mal.
("Sob um belo céu de Maio")



Neste exílio voluntário e tedioso em que me encontro, morando e trabalhando num famoso balneário petrolífero, aproveito o tempo livre para fazer o que parecia impossível em meio à complacente zorra carioca: escrever uma novela. Alguma coisa entre setenta poucas páginas e duas epígrafes colhidas durante a leitura sempre surpreendente de Samuel Rawet - um dos maiores escritores que esse país já teve, autor de títulos seminais como Os Sete Sonhos (1968) e O Terreno de Uma Polegada Quadrada (1969). Rawet morreu em Brasília, provavelmente louco e na miséria, completamente esquecido pelo público e pela crítica, em 1984.

Ainda não decidi se utilizarei ambos os trechos ou se escolherei apenas um. Aceito sugestões neste blog até o próximo post. Enquanto não termino minha primeira incursão pelos meandros da prosa poética, prossigo e recomendo a devoração dos contos, ensaios e peças teatrais deste grande escritor judeu polonês, outro entre tantos que tiveram a sina comumente reservada aos gênios dissidentes num país onde - como dizia Drummond - é proibido sonhar.

Para maiores informações sobre a vida e a obra de Rawet: www.estudosjudaicos.blogspot.com.

sábado, outubro 18, 2008

O pior cego é aquele que não quer ouvir



Zeus me ajude, mas como é difícil ser compreendido nesse mundinho de meu bem... Também, meu caro Pataca, precisava ser poeta, professor, anarco-socialista, bipolar e vascaíno, tudo ao mesmo tempo, numa mesma encarnação? É demais para um só um homem.

Só um desabafo, amigos, passou. Amanhã volto a escrever sobre coisas úteis e instrutivas. Um bom fim de semana pra quem fica. E antes que me esqueça, um lema pra campanha do Gabeira: "Sem medo de ser infeliz". Afinal, votar sem ilusões é preciso.

segunda-feira, outubro 13, 2008

A esperança é a última que morde (Cortázar/Keats - parte 1)
































"Mi queridísima niña:

Me he puesto a pasar en limpio algunos versos, pero no me da ningún gusto trabajar. Tengo que escribirte una o dos líneas y ver si eso me ayuda a alejarte de mi espiritu aunque sea por unos instantes, no puedo existir sin ti. Todo lo olvido salvo la idea de volver a verte. Mi vida parece detenerse ahi: más allá no veo nada. Me has absorbido. En este mismo momento tengo la sensación de estar disolviéndome...Si no tuviera la esperanza de verte pronto me sentiría en el colmo de la desdicha. Tendría miedo de separarme, de estar demasiado lejos de ti. Mi dulce Fanny, no cambiará nunca tu corazón?, Amor mío, no cambiarás? Alguna vez me asombró que los hombres pudieran ir al martirio por su religión. Temblaba de pensarlo. Ahora ya no tiemblo; podría ir al martirio por mi religión- El amor es mi religión-, y podría morir por él....Me has cautivado con un poder que soy incapaz de resistir; y sin embargo lo era hasta que te ví; y desde que te he visto me he esforzado a menudo en razonar contra las razones de mi amor. Ya no puedo hacerlo, el dolor sería demasiado grande. Mi amor es egoísta. No puedo respirar sin ti...." (carta de John Keats a Fanny Browne, 13/10/1819)




Sim, amigos, apesar dos pesares não posso negar, sou mesmo um cândido e romântico otimista: acredito na vitória final do socialismo utópico, na descoberta de novas possibilidades tecnológicas a serviço da humanidade, no contato pacífico com seres de outros planetas, no restabelecimento do ecossistema planetário, na permanência do Vasco da Gama na primeira divisão do Brasileiro, no sorteio do meu número de PIC um dia antes do Natal, na conclusão de minha tese de doutorado até o ano que vem...

Tudo isso veio à tona ontem, em meio à leitura do esplêndido estudo de Julio Cortázar sobre a obra de um dos maiores poetas ingleses de todos os tempos. Quando escreveu as seiscentas e tantas páginas de Imagen de John Keats , Cortázar tinha a mesma idade de seu ídolo ao morrer: ou seja, 26 anos (!). O fato parece guardar alguma pista sobre a obsessão do jovem Julio pela obra do autor da clássica "Ode to a Grecian Urn". Não resisto a citá-la na íntegra - apenas pelo simples prazer de relê-la na magistral tradução de Augusto de Campos(ok, puristas e sabichões, o original segue abaixo)


ODE SOBRE UMA URNA GREGA


I

Inviolada noiva de quietude e paz,
Filha do tempo lento e da muda harmonia,
Silvestre historiadora que em silêncio dás
Uma lição floral mais doce que a poesia:
Que lenda flor-franjada envolve tua imagem
De homens ou divindades, para sempre errantes.
Na Arcádia a percorrer o vale extenso e ermo?
Que deuses ou mortais? Que virgens vacilantes?
Que louca fuga? Que perseguição sem termo?
Que flautas ou tambores? Que êxtase selvagem?


II

A música seduz. Mas ainda é mais cara
Se não se ouve. Dai-nos, flautas, vosso tom;
Não para o ouvido. Dai-nos a canção mais rara,
O supremo saber da música sem som:
Jovem cantor, não há como parar a dança,
A flor não murcha, a árvore não se desnuda;
Amante afoito, se o teu beijo não alcança
A amada meta, não sou eu quem te lamente:
Se não chegas ao fim, ela também não muda,
É sempre jovem e a amarás eternamente.


III

Ah! folhagem feliz que nunca perde a cor
Das folhas e não teme a fuga da estação;
Ah! feliz melodista, pródigo cantor
Capaz de renovar para sempre a canção;
Ah! amor feliz! Mais que feliz! Feliz amante!
Para sempre a querer fruir, em pleno hausto,
Para sempre a estuar de vida palpitante,
Acima da paixão humana e sua lida
Que deixa o coração desconsolado e exausto,
A fronte incendiada e língua ressequida.


IV

Quem são esses chegando para o sacrifício?
Para que verde altar o sacerdote impele
A rês a caminhar para o solene ofício,
De grinalda vestida a cetinosa pele?
Que aldeia à beira-mar ou junto da nascente
Ou no alto da colina foi despovoar
Nesta manhã de sol a piedosa gente?
Ah, pobre aldeia, só silêncio agora existe
Em tuas ruas, e ninguém virá contar
Por que razão estás abandonada e triste.


V

Ática forma! Altivo porte! em tua trama
Homens de mármore e mulheres emolduras
Como galhos de floresta e palmilhada grama:
Tu, forma silenciosa, a mente nos torturas
Tal como a eternidade: Fria Pastoral!
Quando a idade apagar toda a atual grandeza,
Tu ficarás, em meio às dores dos demais,
Amiga, a redizer o dístico imortal:
"A beleza é a verdade, a verdade a beleza"
— É tudo o que há para saber, e nada mais.



ODE ON A GRECIAN URN

I

Thou still unravish’d bride of quietness,
Thou foster-child of silence and slow time,
Sylvan historian, who canst thus express
A flowery tale more sweetly than our rhyme:
What leaf-fring’d legend haunts about thy shape
Of deities or mortals, or of both,
In Tempe or the dales of Arcady?
What men or gods are these? What maidens loth?
What mad pursuit? What struggle to escape?
What pipes and timbrels? What wild ecstasy?


II

Heard melodies are sweet, but those unheard
Are sweeter; therefore, ye soft pipes, play on;
Not to the sensual ear, but, more endear'd,
Pipe to the spirit ditties of no tone:
Fair youth, beneath the trees, thou canst not leave
Thy song, nor ever can those trees be bare;
Bold lover, never, never canst thou kiss
Though winning near the goal — yet, do not grieve;
She cannot fade, though thou hast not thy bliss,
For ever wilt thou love, and she be fair!


III

Ah, happy, happy boughs! that cannot shed
Your leaves, nor ever bid the Spring adieu;
And, happy melodist, unwearied,
For ever piping songs for ever new;
More happy love! more happy, happy love!
For ever warm and still to be enjoy’d,
For ever panting, and for ever young;
All breathing human passion far above,
That leaves a heart high-sorrowful and cloy’d,
A burning forehead, and a parching tongue.


IV

Who are these coming to the sacrifice?
To what green altar, O mysterious priest,
Lead’st thou that heifer lowing at the skies,
And all her silken flanks with garlands drest?
What little town by river or sea shore,
Or mountain-built with peaceful citadel,
Is emptied of this folk, this pious morn?
And, little town, thy streets for evermore
Will silent be; and not a soul to tell
Why thou art desolate, can e’er return.


V

O Attic shape! Fair attitude! with brede
Of marble men and maidens overwrought,
With forest branches and the trodden weed;
Thou, silent form, dost tease us out of thought
As doth eternity: Cold Pastoral!
When old age shall this generation waste,
Thou shalt remain, in midst of other woe
Than ours, a friend to man, to whom thou say’st,
«Beauty is truth, truth beauty,» — that is all
Ye know on earth, and all ye need to know.
(Publicado em 1820)


Eis aí um poema que muitos poetas e especialistas têm vontade de recitar de joelhos. Cortázar certamente não o faria - ciente de que a grande poesia keatsiana é, como a de Rimbaud, um chamado à fruição plena da vida, e não um louvor à metafísica do estético, como quereriam alguns. O que importa à beleza é o aqui e agora da verdade - esteja ela onde estiver, na contemplação da urna grega ou no canto de um simples rouxinol.

***

Apesar de sua extensão assombrosa, Imagen de John Keats está longe de constituir uma tese acadêmica - o que deve ter pesado na decisão do British Council em não aceitá-lo para publicação - talvez pelo fato de ser muito mais um diálogo entre gênios do que um tributo oficial.

***

Uma coincidência atroz: a carta de John Keats a Fanny Browne foi escrita no dia 13 de outubro de 1819. Ou seja, há exatos 189 anos... Será este um dia propício a desesperos amorosos? Ainda por cima, logo após o feriado de Nossa Senhora Aparecida e o dia das crianças! O que Cortázar teria a dizer sobre o assunto, ele mesmo um aficcionado de fenômenos similares?
(continua na próxima semana)

domingo, outubro 05, 2008

Existe morte após a morte?


A pergunta, aparentemente insana, me ocorreu enquanto assistia a um desses documentários de tv a cabo, no qual um distinto cientista revelava sua experiência pessoal no limiar da vida. Como atestam tantos depoimentos similares, parece que existe mesmo um túnel de luz, uma espécie de passagem cósmica, onde moribundos terminais são intimados a decidir se querem retornar aos seus respectivos corpos ou entrar de vez no mundo espiritual.
Quem volta nunca mais vê a vida do mesmo jeito. Em geral reconhecem o ocorrido como um sinal milagroso da existência de Deus: a voz austera e serena que dizem ter escutado seria Dele, ou de alguém de Sua confiança - um santo, um anjo talvez. Dali em diante, o sobrevivente fica tão agradecido pela segunda chance que passa a colaborar com estudiosos do assunto: médiuns, parapsicólogos, publicitários do além e da tese reencarnatória...

Tudo isso já virou clichê. Pensando em renovar o debate, comecei a buscar uma pegunta realmente nova. Pela lógica do argumento espírita, a morte não passa de uma passagem: o único estado possível seria a vida, eternamente mutável e desdobrada. Mas se a morte é um instante entre duas formas de vida, então existem diversas e variadas mortes no caminho de qualquer vivente. Como a distância entre dois pontos pode ser considerada infinita, a morte é infinitamente pontuada ao longo dos caminhos espirituais. Portanto, ultrapassa a idéia de mera passagem: não apenas demarcando as fases do processo vital evolutivo, mas sobretudo afirmando que algo de insondável e duradouro permeia o que insistimos em dividir em três termos - princípio, meio e fim.

Sim, existe morte após a morte. Que o "não" tenha vencido a enquete, acho normal...

Enfim, agradeço aos votantes e me despeço por hoje. Preciso cuidar de renascer uma vez mais. Aliás, como qualquer pessoa viva ou morta.

quarta-feira, setembro 17, 2008

A quem interessar possa

1. Odeio a ponte Rio-Niterói
2. Ressuscitei numa varanda macaense, às 9 da manhã do dia 12 de outubro de 2008
3. Tenho o dever de escrever sobre tudo que me aconteceu nos últimos nove anos
4. Preparo um livro sobre a soberba poesia de Ricardo Domeneck
5. Procuro um quarto e sala próximo ao centro do Rio
6. Dependo da delicadeza dos estranhos (e de sua paciência também)
7. Pretendo em breve rir disso tudo, tomando Coca Zero
8. Afirmo categoricamente a superioridade do jazz sobre qualquer outro estilo de música ocidental (embora no duro prefira folk rock dos anos 60/70)
9. Li Ulisses, Rayuela, O Camponês de Paris, A Montanha Mágica, Crime e Castigo, Malone Morre, Pergunte ao Pó e isso basta
10. Não desisto facilmente de nada que me faça feliz.

segunda-feira, setembro 08, 2008

Toca Roberto!


Entre as lembranças da minha infância suburbana, há uma que mamãe adora recontar em festas de família. Morávamos em um pequeno apartamento em Jacarepaguá; enquanto dona Regina lavava roupa no tanque, eu ficava ao seu lado, ouvindo-a cantar - a não ser que a vizinha fizesse o favor de tocar um disco de Roberto Carlos no último volume de sua vitrola... Se a música parava por algum motivo, mamãe conta que eu gritava, suplicante:
- Toca Roberto!
Os anos passaram e Roberto continua sendo para mim algo maior que um ídolo. Acho que acabamos nos tornando íntimos. Pudera: depois de tantos Natais em sua companhia, não poderia ser diferente.

domingo, agosto 24, 2008

PERGUNTE AO PÓ


Quando li o livro de Fante, aos 17 anos, sabia que nunca mais esqueceria a história de Arturo Bandini. Não que minha identificação com um escritor fudido, autor de um conto chamado "O Cachorrinho riu" e escravo emocional de uma garçonete mexicana me deixasse à vontade. Mas aquele filho da puta tinha acabado com a minha raça, irremediavelmente - e disso eu não podia mais fugir. A histórica tradução de Paulo Leminski - livre e passional como Camila, crítica e autoral como Bandini - sublinhava este selo de amor perene à primeira leitura, à última releitura e, sobretudo, à próxima, de malas prontas, rumo a Los Angeles... E agora, Arturo, seu otário, o que vamos fazer?

Li "Pergunte ao pó" por sugestão de um amigo. "Esse romance é sua cara, você vai se amarrar, o cara é mais idiota que eu e você juntos" - ele disse. O cara estava coberto de razão. O livro me hipnotizou covardemente: só deu pra largar quatro horas depois, com olhos vermelhos e o coração em frangalhos, tomado de inveja e gratidão pelo autor daquilo. Li todos os títulos que a Brasiliense publicou em seguida, e mesmo sem ter feito nada comparável a'Pergunte ao pó" (não apenas seu melhor trabalho, mas um dos livros mais legais da vida de muita gente legal) Jonh Fante é sempre aquilo: certeiro, hilário, seco, comovente, profissional.

Como Arturo, nem sempre amamos o que há de melhor em nós mesmos ou nos outros. Talvez seja essa a grande moral da sua paixão tragicômica por Camila Lopez - para mim até hoje uma das melhores imagens de amor sincero que colhi nos canyons da literatura americana, essa boa companheira de viagens solitárias e decisivas.
O resto é deserto, luar e sertão.

...


Last Poem (to C.L.)

Poeira da bondade
é meu nome:
o dela? Ask the dust,
my dearest -


sim, pergunte a Bandini,
a John Fante

e a mais

ninguém
sob o limbo

de olhos fixos
na filha do deserto:

cativa saudade

muda miragem
do incerto

quinta-feira, agosto 21, 2008

Um trecho de Guy Debord


"No bairro da perdição onde veio parar minha juventude, como que para terminar de se instruir, parecia que haviam marcado encontro os sinais precursores de um próximo desmoronamento de todo o edifício da civilização. Ali permanentemente só se encontravam indivíduos que só poderiam ser definidos negativamente, pela boa razão de não terem nenhuma profissão, não se ocuparem com nenhum tipo de estudo e não praticarem arte alguma (...) Nenhuma doutrina reconhecida moderava a conduta de ninguém e, mais que isso, nenhuma vinha propor àquelas existências alguma ilusória finalidade. Diversas práticas de um instante estavam prontas a expressar, à luz da evidência, sua tranqüila defesa. o niilismo é talhado para moralizar assim que é tocado pela idéia de se justificar: um roubava os bancos e se glorificava por não roubar os pobres; outro nunca havia matado ninguém quando não estava enfurecido. Apesar de toda essa eloqüência disponível, eram as pessoas mais imprevisíveis e, por vezes, muito perigosas. Foi o fato de ter passado por tal meio que me permitiu, depois, dizer algumas vezes, com a mesma imponência do demagogo dos Cavaleiros de Aristófanes: "Cresci nas ruas, eu também!" (Guy Debord, 1931-1994)

terça-feira, agosto 19, 2008

Lavorare stanca


Trabalho, trabalho, trabalho. Nada mais importa no infame desconcerto da vida. A matéria é torpe, o amor, incerto, o futebol "uma caixinha de surpresas", a felicidade uma contradição em termos - só mesmo o trabalho dispensa definições e adjetivos. Trabalhar ou morrer de fome, à míngua, humilhando-se preguiçosamente. Trabalhar pra caralho ou estirar-se na cama surtado, ansioso ou deprimido, remoendo dissabores, nos braços de uma ressaca sem fim. Trabalhar impassível no meio da tempestade, errando, acertando, caindo, levantando, seguindo a lição de Sísifo... Muito trabalho sem diversão faz de Jack um bobão. Escrever um livro sobre ou chacinar o pessoal do escritório? Nada disso, camarada - apenas o de sempre, o simples, o fácil: trabalhar o tempo todo, o dia inteiro, passar noites em claro trabalhando em moto contínuo, ao menos até que o maldito telefone toque, essa porra de telefone que nunca toca. Trabalhar sem pensar muito na vida, nem viver pensando em alguém que nunca liga quando você espera, e que também deve estar trabalhando à beça nesse instante, aliás bem mais que você, seu vagabundo de merda.

domingo, julho 06, 2008

Quem?


Entre 1982 e 1986, a rádio Fluminense FM era a melhor opção para qualquer adolescente carioca em busca de rock, reggae, punk, metal, new wave, jazz e MPB alternativa (da Lira Paulistana, por exemplo). Não havia nada parecido no dial naqueles tempos pré-internáuticos, em meio aos grunhidos finais do regime militar. O sr. Luiz Antonio Mello, programador e co-fundador da rádio, acabou tornando-se responsável pelo meu primeiro contato com a banda inglesa The Who. O audaz niteroiense costumava programar coisas com "Drowned" e "5:15" (de Quadrophenia), em versões piratas e ao vivo. Também aprendi a tocar "Substitute" e "I Can See for miles" no violão por conta do álbum Rough Boys, uma coletânea who maniac produzida por L.A. Mello para o selo da rádio (lançado em LP pela Polydor).

Nos anos 90, a banda voltou à moda, por conta da geração grunge e de seu revisonismo explícito. Por pouco fomos brindados, no ano passado, com um show da turnê do último álbum. É claro que sem a cozinha infernal de John Entwistle e Keith Moon (ambos falecidos) a coisa toda não decola como antes. Ruim é que não ficou: pra falar a verdade, o que se pode ver no Youtube é no mínimo impressionante - tanto pela energia da performance de Roger Daltrey, quanto pela atualidade das canções de Townshend.

Na história musical do século passado, não há nenhuma banda superior. Menos posers que o Led Zeppelin, menos descaralhados que os Stones e os Stooges, menos experimentais que os Kinks ou o Velvet Underground e mais loucos e esporrentos que todos juntos, os então rapazes do The Who lograram uma conjunção inédita de poesia dramática e rock pesado, captada em toda sua fúria pelo álbum Live at Leeds (ao vivo, 14/02/1970). Simplesmente inacreditável. Para mim e para muitos, Live at Leeds é o melhor registro ao vivo da história do rock, ponto final.

domingo, junho 08, 2008

Receitas para engolir e curar o Fracasso

Origem, compra, preparo e sabor

1. Ave sertaneja
de porte médio
fibrosa, rija
de vida noturna

Preços: vinte e
sete contos o quilo
no Mercadão de
Madureira ou

trinta e sete
(ágio de dez paus)
nos açougues febris
da rede Mundial

O jeito é pegar
um 254 na madruga
ou encarar de frente
o trem da Central

2. Embrulhe o fracasso
com jornal de ontem

3. Afogue duas postas numa
panela de barro contendo
dois litros de vinho barato

Salgue e asse
em fogo alto

Enfeite o prato
com uma dúzia de

amóreas secas + 100 g
de fios de óvulos

4. Aí vai ele
numa baixela dourada
ridícula - duas
palavras
em francês fajuto
farão sorrir amarelo

o rapaz de
meia-idade e enrubescer
as bochechas
gentis suburbanas
à mesa

Rende
para uma duas três
mil pessoas


POSOLOGIA

Uma vez
hiperdosada
vai-se a bula ao
mar de bile




UMA PRESA FÁCIL

Sem reação ao
furto-relâmpago -
três meses de salário:

o punguista
enterra a faca até
o talo
sem pressa
nem dó

no meio e
abaixo do cóccix
tatuado:

Cuidado, Frágil

o alvo ideal
para a intensa
e extensa retaguarda

quarta-feira, junho 04, 2008

Eau de Toilette

Encomendaram-me um poema para uma revista de moda e cultura. Por razões que não cabem neste espaço, preferi não publicá-lo (apesar de ser uma excelente e promissora revista, editada por uma grande amiga etc.). Aí está:



EAU DE TOILLETTE

Para C.L.

Se por apego ao credo
à prova de tinta e dúvida
onde vontade e ideal
sapateiam ao som de um
“ah isso sim era bom uma
pena nem sempre é
assim” alguém surgir
portando um secador
de cabelos e uma frase
de Sartre tatuada no
cóccix (com quem atirasse
um naco de beleza às
concubinas da verdade)
atenção redobrada às
menores incisões da TV
sob os cascos da insônia
remoendo o hálito da
incômoda malícia que o
sonho trama em segredo
ofertado aos tentáculos
da medusa da preguiça

sexta-feira, maio 23, 2008

Proibidão na internet


Quem nunca ouviu funks proibidos - os populares "proibidões" - sequer deveria se meter a comentar a situação do crime organizado no Rio de Janeiro. Neste subgênero casca grossa da cultura marginal (e não estamos falando daquela marginalidade romântica endossada pelos poetas, cineastas, músicos e performers dos anos 60 e 70) há muito material para interessados que desejem ir além do que dizem os jornais. Aos desinformados, um toque solidário: melhor que simplesmente ouvir as músicas é pesquisar o gênero no Youtube (sem medo de nada, isto é, falo por mim, quem não deve, não teme). Há dezenas de videozinhos escabrosos onde podem ser vistas cenas de guerras com a polícia, fotos de armamento pesado, "irmãos" do crime, celulares caros, cordões de ouro ou de prata, enfim, tudo o que simboliza e glorifica a vida curta e grossa da galera engajada nas facções fluminenses.
Basta buscar "funk proibidão" + CV, ADA, TC ou TCP para encontrar exemplos cabais da retórica que rege a coreografia social de uma juventude kamikaze e muito orgulhosa de si mesma. Mas, acima de tudo, o funk proibidão oferece sem meias palavras o relato in loco das inúmeras histórias e personagens que compõem o universo das facções e de seus membros: descrições detalhadas de operações, assassinatos, roubos e procedimentos comuns entre os soldados do tráfico, como o já conhecido "microondas" (popularizado desde a morte do jornalista Tim Lopes e espetacularizado pelo filme Tropa de Elite - na cena em que o playboyzinho passador de bagulho da PUC é assassinado pelo malfeitor Baiano), e o tradicional "arrego" pago aos policiais corruptos - policiais estes que estão longe de serem os únicos a se beneficiarem do comércio ilegal de drogas nas favelas do Rio de Janeiro.
Abaixo, seguem alguns links de proibidões. Mais do que estômago forte ou consciência ética, é preciso abrir os olhos e os ouvidos para o que têm a dizer nossos imberbes meliantes sobre a realidade canina em que vivem, matam e morrem todos os dias - enquanto a classe média reclama assustada da violência, condena a CPMF e rebola o rabo em suas festinhas e churrascos ao som do MC Créu.

Vai com Deus!

http://www.youtube.com/watch?v=IPEJJT9uWZQ
http://www.youtube.com/watch?v=5M5dqM2iCuw&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=YSpLGq-tgqo&feature=related

quarta-feira, maio 21, 2008

Cine-Olho? Música da Luz? Cinemancia? (Brakhage & Cia.)


Que nome dar, afinal, para o delírio ótico-espectral de um filme como Dog Star Man, de Stan Brachage, ou para os exercícios vídeo-coregráficos de Maya Deren, bem como para tantos outros nomes do chamado cinema underground ou experimental? Para além de rótulos tão consagrados quanto insuficientes, vemos um mar de fotogramas chamuscando a imaginação do espectador, obrigado a vencer o vício da narrativa romanesca tradicional caso queira aventurar-se por tais plagas.
Não, não se trata de "coisa de intelectual". É tão fácil quanto ridículo descartar a arte experimental sob a alegação de "chatice" ou "intelectualismo". O que está em jogo é: como julgar um filme que consegue ser mais real e fantástico que o pior dos pesadelos, sem necessariamente assustar com suas imagens? O que posso aprender e guardar desses retalhos de películas e seqüências programadas para alterar inapelavelmente nossa percepção usual da cor, da matéria e do movimento?
"A beleza será convulsiva ou não será", disse o velho Breton, ecoando Rimbaud e preparando terreno para a explosão da experiência fílmica. Quer entender melhor? Vá em www.brakhage.com/film_dvd.htm.
E tomem cuidado com o vira-lata espacial...

quarta-feira, maio 14, 2008

Ava X A voz


Há dez anos eu liguei a televisão e Sinatra estava morto. Passaram um vídeo de "My Way", é claro. Eu fui dormir chateado, pensando que um sujeito como Frank não nasce todo dia. Além de cantar, o cara sobreviveu a um pé na bunda de Ava Gardner!

Reza a lenda que, ao saber do romance de seu ex-amante com Mia Farrow, Dona Ava não se conteve e disparou:

- Eu sempre soube que ele queria mesmo era um garotinho.

Ava devia ser pior que a Eva da Bíblia e a Eve do filme juntas. Já o velho Frank era capaz de esmurrar um idiota que ousasse conversar durante um concerto de Billie Holiday (sua maior influência declarada). Nada disso faz diferença para quem ouve uma canção como 'Hello Young Lovers" pela primeira vez, mesmo que num cedezinho fuleiro, comprado numa liquidação da extinta Gabriela Discos. E é por essas e muitas outras que o apelido do homem ficou sendo "a Voz".

Como não encontrei um vídeo decente, deixo aqui a letra de "Hello Young Lovers". É o cúmulo da dor de corno: não obstante estar sozinho, o narrador da canção se dirige aos casais jovens e felizes, como quem diz: "é, já passei por isso, mas depois tudo desaba". Puro pretexto para lamentar-se: o homem é um chato romântico e depressivo. Mas quem agiria diferente, após um fora de Ava Gardner?

Hello young lovers who ever you are
I hope your troubles are few
All my good wishes go with you tonight

I've been in love like you
B
e brave young lovers and follow your star
Be brave and faithful and true

Cling very close to each other tonight

I've been in love like you
I know how it feels to have wings on your heels

And fly down the street in a trance
You fly down a street on a chance that you'll meet

And you meet not really by chance

Don't cry young lovers what ever you do

Don't cry because I'm alone

All of my memories are happy tonight

I've had a love of my own
I've had a love of my own like yours
I've had a love of my own

domingo, maio 11, 2008

Sobre pessoas que vão e ficam


Por mais que eu procure explicar e justificar a persistência de certas pessoas em minha memória, sempre me deparo com o absurdo inaceitável de tentar representá-las em relação ao que sinto ou senti por elas. Em nome do apego, da imaturidade emocional ou do mero medo de perdê-las, alimentei o péssimo hábito de caracterizá-las a partir da impressão que me causaram desde o instante em que as conheci até o momento em que, intencionalmente ou por acaso, sumiram do mapa sem deixar pistas.
Minha má formação encontra aqui sua faceta incômoda e desastrosa. Nunca lidei bem com a rejeição, a perda e suas variantes; na maioria dos casos, sinto-me o único responsável por tudo - o que logicamente não corresponde à verdade. Mas quem quer saber da verdade, quando percebe que não há argumentos válidos num diálogo que se torna monólogo? Delírios autodestrutivos vão sendo moldados pelas garras do ressentimento e da melancolia; pensamentos e atos falhos alimentam uma dor austera que se desdobra em fúria, apatia, revolta ou resignação. A voz da consciência conclui, implacável:
"Que papelão, Pataca! Até quando você vai continuar se comportando como um Hamlet do subúrbio?"
A senhora está certa. A senhora está sempre certa. I beg your pardon, milady. Agora, com sua licença, vê se arruma o que fazer e me deixa quieto, remoendo meus fantasmas domésticos, sob o olhar voluptuoso da caveira de meu pai.

quinta-feira, maio 01, 2008

Ao trabalho, tarde de maio


Feriado bonito, o primeiro de maio... Justamente agora, no meio da tarde cinzenta, cumpro meu único ritual particular - recitar o poema mais belo da língua, sozinho, diante do espelho:

TARDE DE MAIO
Carlos Drummond

Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de |seus mortos,
assim te levo comigo, tarde de maio,
quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,
outra chama, não-perceptível, e tão mais devastadora,
surdamente lavrava sob meus traços cômicos,
e uma a uma,
disjecta membra, deixava ainda palpitantes
e condenadas, no solo ardente, porções de minh'alma
nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza
sem fruto.

Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,
colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.
Eu nada te peço a ti, tarde de maio,
senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,
sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de
converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém
que, precisamente, volve o rosto, e passa…
Outono é a estação em que ocorrem tais crises,
e em maio, tantas vezes, morremos.

Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,
já então espectrais sob o aveludado da casca,
trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebres
com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro
fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,
sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.
E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito
lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.
Nem houve testemunha.

Não há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.
Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara?
Se morro de amor, todos o ignoram
e negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.
O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;
não está certo de ser amor, há tanto lavou a memória
das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,
perdida no ar, por que melhor se conserve,
uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.

Sobre meu caráter duvidoso

Sendo sincero, na medida do possível, devo confessar que meu caráter não é nada exemplar (moralmente falando), embora caiba a mim, mais do que a ninguém, defendê-lo de julgamentos infundados. Por exemplo, ignoro o que signifique "respeito à intimidade alheia" - em especial quando se trata da privacidade de alguém próximo. Namoradas, amigos, professores, parentes - o desejo incontrolável de dissecar suas vidas supera o óbvio dever de não fazê-lo em circunstâncias duvidosas...
Foi ao atravessar o inferno da pré-adolescência que descobri o prazer de surpreender a hipocrisia dos entes queridos por meio de expedientes condenáveis.
Numa gaveta do armário de meu avô, encontrei uma pilha de material pornográfico tão imundo que quase me arrependi da descoberta. Na videoteca do pai de uma grande amiga, achei fitas recheadas de closes escabrosos de sexo anal (homo e hetero). Minha primeira mulher permitiu que eu descobrisse uma dolorosa seqüência de mails entre ela e um ex-namorado insistente (e muito bem correspondido em suas investidas). E nada supera o dia em que aproveitei uma saída rápida de minha analista para ler suas notas sobre um amigo meu, onde a descuidada terapeuta comentava a paixão mal-resolvida do citado pelo autor destas linhas...
Sim, confesso que tenho me excedido. Mas o que dizer das pessoas cujas vidas pude desmascarar secretamente? Nunca me utilizei de tais fatos para humilhar ou chantagear ninguém: em verdade, tudo o que eu lucrei com isso foi ter certeza de que não presto, como todos eles, e provavelmente todos vocês.