domingo, agosto 24, 2008

PERGUNTE AO PÓ


Quando li o livro de Fante, aos 17 anos, sabia que nunca mais esqueceria a história de Arturo Bandini. Não que minha identificação com um escritor fudido, autor de um conto chamado "O Cachorrinho riu" e escravo emocional de uma garçonete mexicana me deixasse à vontade. Mas aquele filho da puta tinha acabado com a minha raça, irremediavelmente - e disso eu não podia mais fugir. A histórica tradução de Paulo Leminski - livre e passional como Camila, crítica e autoral como Bandini - sublinhava este selo de amor perene à primeira leitura, à última releitura e, sobretudo, à próxima, de malas prontas, rumo a Los Angeles... E agora, Arturo, seu otário, o que vamos fazer?

Li "Pergunte ao pó" por sugestão de um amigo. "Esse romance é sua cara, você vai se amarrar, o cara é mais idiota que eu e você juntos" - ele disse. O cara estava coberto de razão. O livro me hipnotizou covardemente: só deu pra largar quatro horas depois, com olhos vermelhos e o coração em frangalhos, tomado de inveja e gratidão pelo autor daquilo. Li todos os títulos que a Brasiliense publicou em seguida, e mesmo sem ter feito nada comparável a'Pergunte ao pó" (não apenas seu melhor trabalho, mas um dos livros mais legais da vida de muita gente legal) Jonh Fante é sempre aquilo: certeiro, hilário, seco, comovente, profissional.

Como Arturo, nem sempre amamos o que há de melhor em nós mesmos ou nos outros. Talvez seja essa a grande moral da sua paixão tragicômica por Camila Lopez - para mim até hoje uma das melhores imagens de amor sincero que colhi nos canyons da literatura americana, essa boa companheira de viagens solitárias e decisivas.
O resto é deserto, luar e sertão.

...


Last Poem (to C.L.)

Poeira da bondade
é meu nome:
o dela? Ask the dust,
my dearest -


sim, pergunte a Bandini,
a John Fante

e a mais

ninguém
sob o limbo

de olhos fixos
na filha do deserto:

cativa saudade

muda miragem
do incerto

quinta-feira, agosto 21, 2008

Um trecho de Guy Debord


"No bairro da perdição onde veio parar minha juventude, como que para terminar de se instruir, parecia que haviam marcado encontro os sinais precursores de um próximo desmoronamento de todo o edifício da civilização. Ali permanentemente só se encontravam indivíduos que só poderiam ser definidos negativamente, pela boa razão de não terem nenhuma profissão, não se ocuparem com nenhum tipo de estudo e não praticarem arte alguma (...) Nenhuma doutrina reconhecida moderava a conduta de ninguém e, mais que isso, nenhuma vinha propor àquelas existências alguma ilusória finalidade. Diversas práticas de um instante estavam prontas a expressar, à luz da evidência, sua tranqüila defesa. o niilismo é talhado para moralizar assim que é tocado pela idéia de se justificar: um roubava os bancos e se glorificava por não roubar os pobres; outro nunca havia matado ninguém quando não estava enfurecido. Apesar de toda essa eloqüência disponível, eram as pessoas mais imprevisíveis e, por vezes, muito perigosas. Foi o fato de ter passado por tal meio que me permitiu, depois, dizer algumas vezes, com a mesma imponência do demagogo dos Cavaleiros de Aristófanes: "Cresci nas ruas, eu também!" (Guy Debord, 1931-1994)

terça-feira, agosto 19, 2008

Lavorare stanca


Trabalho, trabalho, trabalho. Nada mais importa no infame desconcerto da vida. A matéria é torpe, o amor, incerto, o futebol "uma caixinha de surpresas", a felicidade uma contradição em termos - só mesmo o trabalho dispensa definições e adjetivos. Trabalhar ou morrer de fome, à míngua, humilhando-se preguiçosamente. Trabalhar pra caralho ou estirar-se na cama surtado, ansioso ou deprimido, remoendo dissabores, nos braços de uma ressaca sem fim. Trabalhar impassível no meio da tempestade, errando, acertando, caindo, levantando, seguindo a lição de Sísifo... Muito trabalho sem diversão faz de Jack um bobão. Escrever um livro sobre ou chacinar o pessoal do escritório? Nada disso, camarada - apenas o de sempre, o simples, o fácil: trabalhar o tempo todo, o dia inteiro, passar noites em claro trabalhando em moto contínuo, ao menos até que o maldito telefone toque, essa porra de telefone que nunca toca. Trabalhar sem pensar muito na vida, nem viver pensando em alguém que nunca liga quando você espera, e que também deve estar trabalhando à beça nesse instante, aliás bem mais que você, seu vagabundo de merda.